'Não dá para dar privacidade ao filho no uso das redes sociais', diz cofundadora do movimento que prega adiar o uso do celular

'Não dá para dar privacidade ao filho no uso das redes sociais', diz cofundadora do movimento que prega adiar o uso do celular
Foto: reprodução

Por redação com O Globo


Eram apenas algumas mães de uma escola de São Paulo preocupadas com os malefícios do uso de celulares pelos filhos. Hoje, é um movimento nacional que já conta com mais de 10 mil assinaturas em um compromisso: dar o aparelho para os filhos após os 14 anos e liberar o acesso às redes sociais só depois dos 16.


Mariana Uchoa Cinelli, cofundadora do Movimento Desconecta, conta que tudo surgiu como uma tentativa de responder ao velho argumento adolescente de que "todo mundo tem". Como proteger os filhos sem que eles ficassem isolados na fase em que o pertencimento é essencial? A chave era juntar outros pais preocupados, que topassem segurar.


Assim o adolescentes já não é o único a não ter o celular. E as famílias sabem que não são as únicas preocupadas. Mariana explica, em entrevista ao portal GLOBO, o poder da sociedade para se unir e proteger suas crianças, enquanto aguarda respaldo do poder público.


Como surgiu o movimento Desconecta?


Somos seis mães da mesma escola de São Paulo e todas tínhamos preocupação com o uso de celular pelas crianças. A minha filha mais velha tinha 8 anos no ano passado, tinham mães de filhos de 12. E sempre falávamos "vamos segurar o uso de celular", conversávamos sobre estudos falando dos malefícios do uso precoce, das redes sociais, etc. E ficávamos nessa de "vamos segurar", só que as mães de crianças mais velhas diziam "você está falando isso agora que seu filho é pequeno. Quando chegar lá na frente e todos os amigos tiverem celular, não vai querer que ele fique excluído da turma. Então você vai acabar cedendo, mesmo sabendo de tudo que está aí". É um problema real. Por um lado, não queremos expor nossos filhos aos malefícios, mas por outro, também não queremos que nosso filho seja o único, seja o excluído.


É aquele argumento do "todo mundo tem"?


É muito difícil. Então pensamos que se o problema é que todo mundo tem, se combinássemos com os amigos da sala de segurar juntos, aí eles não seriam excluídos, os únicos que não têm. Foi assim que surgiu o movimento mesmo, em um grupo do WhatsApp da escola. Teve alguém que mandou um artigo falando sobre os riscos das redes sociais para crianças e adolescentes, e aí veio aquela pergunta, "vamos falar sobre isso?" Criamos um grupo de WhatsApp chamado Crianças Sem Celular que rapidamente ganhou uma proporção enorme, sei lá, 300 mães e pais. E ali vimos que tinha muito trabalho a ser feito, criamos esse comitê que somos nós seis, e decidimos ir em frente. A ideia inicial era mesmo uma coisa ali na nossa escola, mas tinham pais e mães que queriam levar para a escola do outro filho ou do sobrinho. Foi surgindo muita gente interessada vindas de outras escolas. Fizemos uma live para explicar como é que funcionaria e o negócio tomou uma proporção gigantesca: nossa ideia era fazer uma reunião virtual, as inscrições estouraram o limite da plataforma e tivemos que fazer uma live do YouTube. Tinha muita gente preocupada.


Há outras iniciativas como essa?


Tem outros dois movimentos nos quais nos baseamos muito, mais antigos que o nossos, um nos Estados Unidos, o Wait Until Eighth, que é para você esperar até o fim do oitavo ano deles, ou seja, esperar para dar o celular no ensino médio, e um na Inglaterra, que chama Smartphone Free Childhood, que também sugere isso: adiar a entrega dos aparelhos até os 14 anos e o acesso às redes sociais. Na live, apresentamos como achávamos que deveria ser feito, para que todo mundo da sala, ou pelo menos a maioria assinasse um compromisso. A nossa ideia era justamente passar para os pais das outras escolas como conversar com os outros pais, como chamar para esse combinado. Ainda não tínhamos a plataforma de assinaturas que hoje temos, então era mais um trabalho de conscientização.


Vocês sentiram resistência entre os pais?


Não sentimos muita resistência, mas tem muita gente que já tinha dado o celular e aí nem se envolvia na conversa. O que tivemos foram muitos pais empenhados. Fizemos uma pesquisa na nossa escola e descobrimos que as crianças ganhavam o celular mais ou menos no sexto ano, com 11, 12 anos, embora isso mude de escola para escola. Víamos as mães do quinto ano, até do quarto ano, quando uma ou outra criança estava começando a ganhar o aparelho, querendo adiar. Elas estavam muito empolgadas, tipo isso é o meu bote salva-vidas. Ou que tinham filhos que já haviam recebido o celular e estavam vendo como aquilo estava dificultando os estudos, a interação com os outros jovens, e queriam muito que o movimento acontecesse.


Quais os resultados?


Lançamos o acordo em outubro do ano passado, na nossa escola, e vimos que os alunos do sexto ano não estão mais ganhando celular. A maioria dos pais não deu mesmo no sexto ano. É ótimo isso. A ideia é ir subindo essa régua, aos poucos, ano a ano, até chegar aos 14 anos. Estamos na ordem de 10 mil assinaturas do compromisso no Brasil todo. No nosso site você assina esse acordo, se compromete a não dar o celular e adiar o acesso às redes. Mas você também deve conversar com outras famílias, da sala de aula, da escola inteira. Damos esse passo a passo lá no nosso site. Porque só funciona se as famílias estiverem conectadas entre si.


Na pandemia, muitas famílias deram o celular para diminuir o isolamento, não?


Acho que realmente a pandemia foi um desafio, em muitos aspectos, e muitas famílias se viram quase que obrigadas a dar um celular para a criança para que se comunicassem com os amigos, até para as aulas e tudo, então acho que as crianças mais velhas sofreram mais.


É possível tentar tirar o telefone?


Tirar, não. O que a gente sugere é que se você já deu um smartphone para a criança, tente trocar por um telefone sem acesso à internet nem às redes sociais, os dumbphones. Se não der para fazer isso, será que, pelo menos, dá para segurar o acesso às redes sociais? Então, vamos por um caminho de controle de danos. Não dá para segurar o acesso às redes sociais, vamos trabalhar na conversa, no monitoramento, ir educando. É muito difícil tirar o celular. Oferecemos alternativas, mas acho que tirar é muito ousado, é querer tirar todo o universo no qual a pessoa já está inserida.


O que mais poderia ser feito nesse controle de danos?


O que a gente vê dos estudos, é que esses vídeos curtos, os shorts do YouTube, são muito danosos. O TikTok também tem muita experiência negativa, principalmente nas meninas, pela coisa da comparação, de estar sempre vendo ali uma falsa pessoa perfeita. Isso aumenta muito os índices de depressão e ansiedade. As redes sociais, no geral, é que são as grandes vilãs. Discord é zero monitorado e controlado, não tem nenhum tipo de filtro, e transmite em tempo real desde abuso de crianças, animais sendo maltratados, enfim, umas atrocidades. Isso aí é uma parte criminosa. Mas tirando isso tem a parte que vai gerar ansiedade e depressão nas crianças, o vício. Seguindo os especialistas, recomendamos esses aplicativos de controle parental, como o Qustodio. E também falamos com os pais para que estejam sempre atentos, não existe isso de invadir a privacidade do filho, tem que monitorar. Uma regra que é muito legal que o Jonathan Haidt, que é aquele estudioso americano, fala muito, é sem telas no quarto. Porque a maioria das coisas acontece ali, no próprio quarto da criança, você pensa que ela está dormindo, está ali com a porta fechada, mas tem coisas acontecendo. Então, não dormir com o aparelho dentro do quarto e se usar o computador, que seja em algum lugar em que a família esteja presente.


Como vocês orientam que ocorra a conversa com os filhos?


Estamos criando um guia de conversa. Não achamos que com 14, 16 anos você vai entregar o celular e seu filho vai estar pronto para acessar tudo. Tem que ir conversando antes, educando. O que fazer se você é exposto a um conteúdo impróprio, a um conteúdo de violência? Você tem que falar com um adulto sobre qualquer coisa que te deixe desconfortável. Não mande fotos sem roupa e se mandar, vem falar com a gente. Se alguém está te chantageando com essas fotos ou com alguma informação, fale com um adulto, ninguém vai te culpar. Se você vir alguma coisa como cyberbullying, não participe. Então, tem algumas conversas que dá para ir puxando para abrir esse diálogo, ir preparando para esse momento.


O que vocês têm tido de retorno dos próprios adolescentes?


Teve uma mãe que contou que o filho era o único na sala que não tinha celular. E ele, agora, usa o fato da mãe ter assinado o acordo do Movimento Desconecta como um álibi, assim "olha, eu não sou louco, a minha mãe é que não quer me dar porque ela assinou o acordo". Virou uma desculpa, uma justificativa dos próprios adolescentes para os outros.


Mas eles entendem?


Ah, eles entendem. Na escola trouxemos palestrantes para falar com as crianças, investimos no diálogo. Minha filha, com nove anos, já sabe que o excesso de telas faz mal para ela. Você vai construindo, eles vão entendendo.


E a lei de proibição nas escolas?


A lei foi maravilhosa, porque acho que todo mundo concorda que escola não combina com celular. Na hora da aula, as crianças têm que estar atentas, e, nos intervalos, têm que estar interagindo, brincando com os outros, brigando, fazendo as pazes, aprendendo a lidar. Isso protege as crianças naquele período, mas quando saem da escola volta todo esse acesso. O que a gente percebeu é que depois da lei, pelo fato de as crianças não usarem o celular no período escolar, começaram a usar menos fora também, num círculo virtuoso. Usar menos significa usar menos.


O movimento é novo, mas essa discussão também é nova. O que você sentiu do ano passado para esse? Depois da série 'Adolescência', os estudos, os especialistas, a lei das escolas.


Acho que as famílias estão acordando. Era um problema que estava ali latente, então eu acho que, trazendo tudo isso, a série "Adolescência", essas reportagens que vêm surgindo mostrando todas essas as atrocidades que acontecem online. Agora estamos na expectativa de uma regulamentação das redes sociais, estamos acompanhando de perto todas essas políticas públicas com muita expectativa e esperança de atingir cada vez mais e mais famílias.


DICAS


Como orientar seu filho


  • O que fazer se você é exposto a um conteúdo impróprio, a um conteúdo de violência? Tem que falar com um adulto sobre qualquer coisa que te deixe desconfortável.
  • Não mande fotos sem roupa. Se mandar, venha falar com a gente.
  • Se alguém está te chantageando com essas fotos ou com alguma informação: fale com um adulto, ninguém vai te culpar.
  • Se você vir alguma coisa como cyberbullying: não participe.