'O quarto não é mais o lugar seguro que era antes para o adolescente', diz o pediatra Daniel Becker
22/07/2025 16:10:35
Por redação com O Globo
Uma infância plena, com crianças brincando com outras crianças, desfrutando da natureza, interagindo e criando. Adolescentes ativos, aprendendo a se divertir em grupo e formando sua própria identidade. É isso que as telas estão roubando das novas gerações. Em troca, oferecem conteúdos violentos, pensamentos extremistas, ideais impossíveis de beleza, riqueza e fama e vício em jogos. É contra essa troca que o pediatra e colunista do GLOBO Daniel Becker vem lutando.
Nos últimos anos, sua voz se destacou entre as que alertam sobre os riscos das telas para crianças e adolescentes. Tomou essa como uma das suas missões e celebra a participação na batalha pela lei que restringe o uso dos aparelhos em escolas como um dos "maiores orgulhos da vida".
O médico chama atenção para os muitos outros perigos do universo digital. E não só. Segundo ele, o problema não está apenas naquilo que se vive pelas telas, mas em tudo aquilo que deixa de ser vivido no mundo real e que é essencial para o desenvolvimento de qualquer ser humano.
Durante uma entrevista concedida ao portal O Globo, ele traz soluções simples que vão desde dormir com o celular fora do quarto a, simplesmente, brincar um pouco ao ar livre.
Como as telas afetam o desenvolvimento físico e social das crianças e adolescentes?
O dano das telas pode ser resumido em duas grandes dimensões. Aquilo que as crianças e os adolescentes deixam de fazer quando estão nas telas, que é a perda da conexão com o mundo real, e o conteúdo adquirido dentro do mundo digital. Então, começando pela primeira dimensão: na puberdade, quando as mudanças são muito visíveis, tem uma mudança invisível, que é o amadurecimento do cérebro. Ele vai se reconfigurando, passa de um cérebro infantil para um cérebro adulto e, para isso, precisa vivenciar certos elementos da realidade para poder amadurecer o córtex pré-frontal, que é onde moram as funções executivas. Para isso, ela precisa de experiências com os pais, que vão dar modelos de comportamento, exemplos, vão colocar limites, fazer orientações. Precisa de experiências com a escola, que vai exigir trabalhos e deveres, estudo para prova, organização do tempo, planejamento, e vai dar diretrizes éticas e morais. Precisa de experiências sociais também: perder um amigo e reconquistá-lo, ser excluído do grupo e se reincluir, tomar um pé na bunda do namorado e arranjar outro, vivenciar aventuras, a arte, a natureza, o esporte. Enfim, todas as experiências que a vida oferece. E o que as telas fazem? As telas afastam as crianças de todas essas experiências. Elas ficam completamente imersas no mundo que não é o mundo onde a espécie humana se desenvolveu.
Então, é tudo que ela está perdendo, e ainda tem o problema do que ela vai viver no universo digital.
Sim, a segunda dimensão é o que ela vai viver nessas telas. E aí é uma festa, posso ficar falando aqui duas horas dos conteúdos inadequados. Primeiro, do vício, da dependência imposta pelo algoritmo, que sempre vai mandar um conteúdo cada vez mais interessante, mais encantador, seja porque diverte, seja porque engaja emocionalmente pelo ódio, pela raiva, pelo fascínio. Um marco das redes sociais e do mundo digital é que eles oferecem uma experiência tão intensa que nada no mundo real pode reproduzir aquilo. É um dos motivos do vício. Tudo se torna chato, aborrecido e tedioso diante das redes sociais. Quando você faz um gol na partida da pelada, três amigos vão dizer "fez um golaço". Quando você põe nas redes um vídeo do teu gol, vai ter 300 likes. O grupo de WhatsApp também tem muito essa coisa de dar a sensação do pertencimento. É a mesma coisa se eu colocar uma criança diante de um pote de biscoito recheado e de uma cesta de maçãs.
E o biscoito é o pior possível.
É o lixo que engaja mais. São os desafios perigosos, as comparações com as ostentadoras e vendedoras de suplementos, tutoriais de maquiagem para crianças de três anos. E, no caso dos meninos, a misoginia, o ódio, a violência. Uma coisa gravíssima, que é o vício em pornografia, está disparando no mundo inteiro. Eles ficam expostos a uma iniciação sexual em que mulheres estão sendo humilhadas, objetificadas, espancadas, submetidas à violência. Além de performances e corpos impossíveis, provavelmente muito à custa de remédio. E aquilo passa a ser o modelo de sexualidade deles, em vez de ser um modelo de sexualidade baseado na intimidade, no afeto e na igualdade. E tem também o cyberbullying, que é permanente e extremamente danoso. O bullying escolar, no dia a dia, já é muito nocivo, muito difícil de suportar. Agora, o cyberbullying é 24 horas, sem mediação nenhuma, com milhares de pessoas vendo a sua humilhação. Ainda tem os riscos ideológicos, as fake news e a disseminação dessa mentalidade coach, a perda do sono, a atenção fragmentada que está levando a perdas cognitivas. É uma festa de danos. O conjunto disso tudo evolui para as meninas com transtornos alimentares, depressão, automutilação e suicídio, depressão, etc. Para os meninos vai evoluindo em direção à radicalização política, ao nazismo, a atentados às escolas, misoginia.
Quais sugestões práticas e de curto prazo podemos dar aos pais?
A primeira coisa é lembrar a importância de oferecer um mundo real bom para as crianças e adolescentes. Então, para criança é a pracinha, o brincar real, com os amiguinhos, na natureza. Para o adolescente, a brincadeira também está valendo. E a interação com outros. O esporte é uma grande solução, mas há outras atividades, de voluntariado, de grupos, de igreja, de escoteiro. Enfim, tem inúmeras opções para estimular o engajamento. Em relação aos aparelhos, quando você estiver precisando de um tempo, a criança já brincou, e você quer recorrer a uma tela: ligue a televisão. No canal a cabo ou no streaming a gente sabe o que eles estão assistindo, não tem algoritmo, a coisa não vai derivando para o lixo. É muito mais seguro. Outra regra básica: não deixar dormir com o celular no quarto, isso é fundamental. Idealmente também não ter computador no quarto, tem que ficar numa área comum, para evitar que ele derive para Discord e pornografias da vida. E as regras do Movimento Desconecta são as ideais, as regras que o Jonathan Haidt propõe: celular depois dos 14, e redes sociais o mais tarde possível, depois dos 16. E celular zero na escola, que graças a Deus a gente conseguiu com a lei.
Alguns pais se questionam sobre privacidade.
Não tem que pensar em privacidade, privacidade existe sim, mas a internet não é um lugar privado. Tem que ter privacidade nas relações com os amigos, com as namoradas e namorados e tal, mas a internet é por definição um lugar público, onde todo mundo está vendo tudo o que acontece, inclusive a Interpol. Então, a privacidade é muito relativa na internet.
O que fazer se o adolescente já ganhou o celular?
Aí é um outro mundo. Se você tem um filho de 10, 12 anos que já tem um celular, você precisa realmente não deixar ele ter redes sociais no celular, e aí você vai ter que prescrutar esse celular, porque ele tem formas de fazer isso escondido. Tem que ter um bom aplicativo de controle parental e caçar o que ele está fazendo ali, supervisionar de fato, inclusive observar os grupos de WhatsApp, que é um lugar onde tem bullying, fake news, ideologias nocivas, um monte de coisas ruins. Além disso, é tarefa da família, e também da escola, desenvolver a educação midiática. Sentar junto, ajudar a desenvolver pensamento crítico, olhar o que estão recebendo e conversar. Passa por orientação e pelo exemplo — que os adultos não estão dando já que também estão viciados e intoxicados pelo algoritmo. E, finalmente, é preciso regulamentar as redes e responsabilizá-las pelos crimes que estão sendo cometidos na internet, que são inúmeros. Sem regulamentação, deixando tudo na mão das famílias e um pouquinho das escolas, não vamos conseguir avançar.
Mais alguma sugestão para os pais?
Eu tenho falado muito ultimamente sobre a formação moral da criança. Ela é muito dada pelos pais e pelos exemplos que ela tem, pelos professores e tal, mas também é muito dada pelas histórias, pela literatura. O abandono da leitura é uma coisa que tem me chamado muito a atenção. A história com personagens, com conflitos, com o bem e o mal, com heróis, vilões, certo e errado, com a jornada do herói. Isso tudo é muito formador para a criança, para adolescentes. E a gente está abandonando as histórias. Essa falta de reflexão também está trazendo muito dano para a formação das crianças.
De pouco mais de um ano para cá, o debate sobre telas se intensificou muito. O senhor acha que a sociedade está acordando?
Está se formando um consenso na sociedade... Pesquisas mostram isso. Tem uma pesquisa do Datafolha que indica que 80% dos pais acham que a internet está causando danos, que o uso do celular é excessivo. E muita gente também concorda com a regulamentação das redes. Quando você fala do PL 2628, que é o que está propondo essa proteção de crianças e adolescentes nas redes, até a extrema-direita, que geralmente fica gritando sobre cerceamento da liberdade de expressão, censura, sei lá o quê, fica quieta, porque criança e adolescente é uma pauta que atravessa o espectro político. O Guia de Dispositivos Digitais por Crianças e Adolescentes, lançado pelo governo federal, é um bom material para as famílias. Então, existe sim um consenso crescente de que precisamos limitar o mundo digital, especialmente para infância e adolescência. É aquela frase do [escritor francês] Victor Hugo: “nada é mais poderoso do que uma ideia cujo tempo chegou”. E esse tempo chegou.
O senhor acha que essa agora é a maior preocupação dos pais? A tela é a grande vilã dessa geração?
Bom, a preocupação dos pais com fumar, fazer sexo desprotegido e dirigir ou pegar carona com alguém que bebeu, continua. Não é que as preocupações não existam mais. Mas é uma preocupação adicional. O crime se mudou para esse território da internet, é muito mais fácil ser pedófilo, ser golpista, ser ladrão ou ser predador de crianças na internet do que na pracinha, atrás da moita. É muito mais seguro para o criminoso. Então, o crime está florescendo na internet. E se tornou talvez o lugar mais perigoso do mundo. O quarto não é mais o lugar seguro que era antes. Então, realmente, é uma preocupação adicional e talvez seja a principal hoje em dia.
No consultório, no atendimento dia a dia, o que o senhor vê?
Olha, quem está comigo há muito tempo sabe e segue as orientações mais ou menos. Eu insisto muito. Mas eu pego algumas crianças e adolescentes que chegam para mim já com um grande dano feito pelo mundo digital. Principalmente meninos com vício em jogo, que pega muito e passam o dia e a noite toda jogando compulsivamente. E alternam com pornografia. E não saem de casa, engordam, ficam sedentários, não fazem esporte, não têm contato social, e quanto menos contato social, menos habilidades sociais também. E, no caso das meninas, recebo algumas com transtornos alimentares. Eu tive duas, uma delas chegou a ter que ser internada para ser alimentada, aos 15 anos. Casos totalmente relacionados às redes sociais. Claro que a anorexia mental e a bulimia já existiam antes da internet, mas agravou muito, o número de casos aumentou assim como a gravidade, porque aquele conteúdo fica martelando o tempo todo na cara da menina.
DICAS
Como proteger seu filho do excesso de telas
- Ofereça um bom mundo real. Crianças precisam brincar, estar com amiguinhos, aproveitar a natureza. E adolescentes também devem brincar, interagir, ter acesso à leitura e cultura e praticar esportes.
- Prefira a TV: Quando os pais precisarem recorrer às telas, prefiram televisão. A programação de canal a cabo ou streaming é muito mais segura.
- No quarto, não. Durante a noite, o celular deve ficar com os pais, nunca no quarto, nem carregando. O computador também deve ficar numa área comum, para maior monitoramento.
- Adie: Dê o celular só depois dos 14, e redes sociais o mais tarde possível, depois dos 16. E celular zero na escola.
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